sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Maestro Silva Cascão História de uma vida

JOÃO DA SILVA CASCÃO NASCEU EM SÃO JULIÃO DA FIGUEIRA DA FOZ, A MESMA FREGUESIA QUE VIU NASCER DOIS DOS SEUS TRÊS FILHOS. MAS A VIDA DO MAESTRO QUE HÁ MEIO SÉCULO SE DEDICA À MÚSICA LEVOU-O A MUITOS CANTOS DO MUNDO. ACOMPANHE ESTE REMIX DE MEMÓRIAS DE UM HOMEM CUJA HISTÓRIA SE CRUZA COM A DE MUITOS NOMES QUE, AO LONGO DAS ÚLTIMAS DÉCADAS, FIZERAM A BANDA SONORA DA VIDA DA FIGUEIRA DA FOZ.

Frequentou na Figueira da Foz o jardim-escola e o primeiro ciclo, mas depois, aos 12 anos, a continuidade dos estudos fê-lo rumar a Coimbra, onde viviam as tias maternas. Completou o liceu na José Falcão e ingressou na Faculdade de Ciências, nos chamados cursos preparatórios, até perceber que não queria realmente ser engenheiro. "Não deixei os estudos por causa da música", sublinha, no início desta conversa com O Figueirense, que assinala os seus 50 anos de carreira. "Estava habituado a ser um aluno acima da média, mas na Faculdade fui-me abaixo", confessa. Entretanto, o jovem ficara sozinho em Coimbra, e a música surgiu-lhe como "uma opção profissional para uma vida financeiramente confortável e estável".

A MÚSICA COMO PROFISSÃO

Há muito, aliás, que a música fazia parte da sua vida. Começou aos nove anos a aprender piano, por sugestão paterna. "Foi com a professora Maria Violeta Águas, que já faleceu", recorda o maestro. A velha mestra intuiu-lhe o jeito e propôs-lhe "estudar música a sério", iniciando-o assim no solfejo, como constava do programa oficial que lhe permitiu ir a Lisboa fazer os exames da praxe. Já em Coimbra, num instituto de música que antecedeu o actual conservatório, regressou ao piano. "Mas não completei o curso", explica, tendo-se ficado pelo curso complementar de piano, optando por não ingressar no curso superior daquele instrumento. "Ainda hoje o que se estuda no Conservatório não tem relação nenhuma com a música profissional não clássica", justifica (ver caixa). Mas a opção por uma carreira na música não foi pacífica. O pai, que o despertara para a música, não concordava que fizesse dela a sua opção profissional. "Queria que eu lidasse com a música como ele fez, desde sempre, com o teatro: como amador", recorda o maestro. Mas em 1958 a situação alterou-se. "Uns músicos figueirenses semi-profissionais, que actuavam em bailes aos sábados, incluindo no Casino Oceano, perguntaram ao meu pai se eu não queria juntar-me a eles, porque precisavam de um pianista", lembra. O pai concordou, e o jovem músico uniu-se ao conjunto que a Figueira da Foz conheceu como "Os Satélites do Ritmo", e que revolucionaria o ambiente dos bailaricos da época, com Augusto Ferreira na bateria. "Todos liam pautas, e os arranjos escritos eram obrigatórios", explica. Silva Cascão cedo ficou encarregue dos arranjos para dividir os instrumentos, mas foram os demais elementos, reconhece, que o ensinaram a tocar música de dança, com piano-condutor. Um ano depois, o êxito dos Satélites era assinalável, e Silva Cascão inscreve-se na (já extinta) Caixa de Previdência dos Profissionais de Espectáculos, com o número 11598. Foi há 50 anos.

VIAGENS

Em 1961 os Satélites animavam diariamente as matinés na Piscina Praia. Quando o maestro João de Vasconcelos, que dirigia a Orquestra Caravana, que fazia a época de variedades no Casino, teve de regressar mais cedo ao Parque Mayer, sucedeu-lhe Tibúrcio Lopes. Foi este o responsável por Silva Cascão começar a actuar na boîte do Casino, onde tocaria de Setembro a Novembro, na que seria a primeira época de muitas que faria naquela "casa". Findo o contrato, Silva Cascão rumou a uma estância de Inverno na Suíça, com um grupo de músicos portugueses. Foi naquele país do norte da Europa que comemorou os seus 22 anos. Terminado o contrato, também curto, os músicos dirigiram-se para Portugal, mas uma paragem em Madrid alterou-lhes os planos, quando um encontro fortuito com um empresário português lhes proporcionou novo trabalho, desta feita na Grand Via madrilena. Quando finalmente regressou a Portugal, esperava-o já Tibúrcio Lopes, para nova época no Casino. Esperava-o também uma jovem figueirense, que há três anos, depois de um São João transformado em cupido, o aceitara como namorado. Casaram-se a 20 de Setembro de 1962, uma quinta-feira, recorda o ainda enamorado Silva Cascão, porque um antigo pianista da orquestra do Casino aceitou substituí-lo durante as duas noites que durou a lua-de-mel. "No sábado seguinte voltei ao trabalho", lembra. E trabalhava bem, a julgar pelos convites que se sucediam. Acabou por rumar a Lisboa, onde encontrou a sua oportunidade numa boîte , mas regressaria pouco depois à Figueira da Foz, de novo para a época estival no Casino, e para o conforto do lar onde o esperava a esposa, Elizabete, já grávida do primeiro filho. Mas a vida de músico itinerante estava longe de terminar. Entre 1962 e 68 viveu em Lisboa, com interregnos para contratos na Alemanha ou no Tirol austríaco. Seguiram-se outros destinos, da sueca Estocolmo à holandesa Roterdão, onde viu Portugal chegar ao 3.º lugar do campeonato mundial de futebol, num ano em que os holandeses, já afastados da competição, "tinham eleito Eusébio como o seu clube", brinca. Na capital, Silva Cascão toca em casas como "A Cave", o "Porão da Nau" e a boîte do Hotel Ritz. Em 1968 surge a possibilidade de ir para Luanda, como parte de um quarteto. O músico aceita e é já em terras de Angola que toca na passagem de ano que recebe 1969. Seis meses depois, Elizabete e os dois filhos do casal juntam-se-lhe em Luanda, mas Silva Cascão não se dá ainda por satisfeito. Parte para a Rodésia (actual Zimbabué), e daí para Vinduque (Windhoek), capital da Namíbia. Segue-se, já em África do Sul, Port Elizabeth, Cape Town e Durban, num circuito pela costa sul-africana integrando um dos conjuntos mais bem pagos. Entretanto, os anos passavam, e o filho mais velho de Silva Cascão preparava-se para o ingresso na escola primária. "Disse aos outros elementos que aquele seria o último contrato", conta a O Figueirense. Em causa estava a época na capital da Rodésia, hoje Harare. Mas a vida teimava em trocar-lhe as voltas. O filho mais velho foi entregue à hospedeira e regressou à Figueira da Foz, onde ficaria aos cuidados dos avós paternos, de 1969 a 1974. À mulher, o médico aconselha então uma nova gravidez. "Costumo dizer que a minha filha nasceu por receita médica", brinca o maestro. A menina nasce ainda em Durban, mas a mãe acaba por decidir regressar com as duas crianças para Portugal, onde estava já o filho mais velho. Silva Cascão parte para a então Rodésia, para um contrato de um ano. Tocava à noite em diversos hotéis, e durante o dia trabalhava como funcionário público, na contabilidade do equivalente ao ministério da educação português. "Números sempre foi comigo, e como falava bem inglês, fui-me destacando", reconhece. Com uma vida mais estável, volta a chamar a família para junto de si em 1974. Mas, três anos depois, o pai do músico morre, e Silva Cascão desloca-se sozinho a Portugal, a fim de visitar a mãe. Estava-se então em Março, e o Café Nicola ainda era um dos pontos de encontro de referência no Bairro Novo. "Entrei no Nicola e ouvi um grito: eram o Mário Simões e o Maestro Santos Rosa", recorda.

O REGRESSO

Queriam-no com eles, e Silva Cascão não resistiu. A família já não se sentia bem na Rodésia, onde pairava a ameaça de distúrbios como os que tinham acabado de assolar a vizinha Moçambique. Regressou apenas para se despedir - rejeitando uma promoção de que só teve conhecimento ao chegar - e para preparar a família. Deixou o continente africano a 29 de Maio de 1977, e a 2 de Junho (re)estreou-se no Casino Figueira, primeiro ao lado de Santos Rosa e, a partir de 1979, assumindo a direcção do conjunto de variedades daquela casa de espectáculos, até 1991, quando são dispensados os seus serviços no âmbito de uma renovação de programa. Nada que perturbasse o músico, que meses depois tocava já no Casino de Espinho, e que em 1994 regressava, uma vez mais, ao Casino Figueira, para mais cinco anos de actividade musical. Em 1999 Silva Cascão deixa novamente o Casino Figueira e ruma para o da Póvoa, onde fica vários anos, intercalando as temporadas com as férias de colegas no também já seu conhecido Ritz lisboeta e no Hotel de Golf da Quinta da Marinha. Em 2005 decide reformar-se, e regressa à sua Figueira natal, onde o espera um desafio diferente. "O meu avô foi um dos 14 sócios fundadores da Sociedade de Instrução Tavaredense (SIT), e o meu pai representou lá de 1925 a 72", revela, para justificar o amor à SIT, que o leva a dar início ao Coral da SIT, em Janeiro de 2007(ver caixa).

DO PALÁCIO SOTTO MAIOR AO CASINO FIGUEIRA

Já este ano, aquando das comemorações do 90.º aniversário da morte do ilustre músico figueirense David de Souza, Silva Cascão é indicado à autarquia para interpretar alguns temas do compositor, no âmbito de uma dupla homenagem que recordou também o professor Pires de Azevedo. A cerimónia, no Palácio Sotto Maior, foi um dos pontos alto das comemorações, que contaram com o patrocínio do Casino Figueira. A actuação de Silva Cascão, que deu a conhecer o tema inédito de David de Souza, "Um beijo na praia" - talvez a única composição deste músico para piano - não passou despercebida à actual administração do Casino Figueira, que o convidou para dois meses de três actuações semanais no Álea, numa rubrica intitulada "Silva Cascão ao piano". Assim, quem ainda não ouviu ou recordou a sonoridade deste decano da música, pode fazê-lo ainda nos próximos dias 25, 26 e 27 de Agosto, sempre a partir das 22h00, com entrada livre. Depois… bem, depois, como a vida de Silva Cascão mostra sem margem para dúvidas, a música continuará a fluir das suas mãos, para alegria dos nossos ouvidos.

Autodidacta e fã de George Shearing

Na opinião de Silva Cascão, "o Conservatório forma concertistas", mas continua alheio "aos aspectos harmónicos e filosóficos que o jazz trouxe para a música ligeira ou popular". Silva Cascão não toca - nem quer tocar, garante - jazz. "Para tocar jazz é preciso viver jazz, dormir jazz e respirar jazz", admite. E o hoje maestro sempre quis algo diferente. Autodidacta, preferiu, "com um ou dois colegas", estudar, "comparar harmonias originais com arranjos publicados pelo homem responsável pela revolução harmónica do próprio jazz, George Shearing, que definiu a "têmpera de escala"".
Demorou 30 anos a encontrar as primeiras obras impressas sobre essa evolução harmónica, de metodólogos que as ensinam, nas escolas de jazz.

A Gala dos Pequenos Cantores

Silva Cascão foi o músico responsável pelo acompanhamento de quase duas dezenas de edições da Gala dos Pequenos Cantores. As primeiras, transmitidas pela RTP, eram emitidas em directo, ao longo de dois dias. A Silva Cascão e aos restantes músicos coube acompanhar a divulgação televisiva de temas como "Eu vi um sapo", apresentado pelo Coro Infantil de Oeiras, e que no ano seguinte, na voz da vencedora nacional da Gala dos Pequenos Cantores, Maria Armanda, se faria ouvir no italiano Sequim d'Ouro. Silva Cascão recorda também Marina, a menina israelita que encantou com o tema "Papa Popeye", vencendo a primeira edição o certame em 1979, há 30 anos. "Foi nesse ano que a indústria discográfica começou a despertar para a música infantil".

CANTAR COM O CORAÇÃO

Com cerca de quatro dezenas de elementos, todos amadores, o Coral da Sociedade de Instrução Tavaredense é a mais recente "menina dos olhos" de Silva Cascão, seu director musical e maestro. As diversas ocupações profissionais dos seus elementos tornam difíceis os ensaios participados por todos, mas não diminuem a dedicação que lhes dedicam. Os resultados têm sido positivos e muito aplaudidos. Foi o que aconteceu recentemente, quando a maestrina do "Academic Choir of Students Cultural Center of University of Nis", grupo que esteve na Figueira da Foz para o I FigFolk Music e actuou naquela colectividade, disse, sobre o Coral da SIT, que este é "o único deste género no Mundo", e que foi "a primeira vez na vida" que ouviu "cantar com o coração", classificando-o de "simplesmente fabuloso".

Trabalho da Autoria de Andreia Gouveia Editado por O Figueirense


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